Por Flávia Nogueira
Musicoterapeuta, musicista
Introdução
A partir deste ano, todas as escolas de ensino básico, públicas e privadas, deverão oferecer aulas de música a seus alunos. O argumento que levou o governo a sancionar a Lei 2738/08 baseia-se na importância da música em promover o desenvolvimento cultural de seus alunos.
Assim como a Comissão de Educação, concordo com o potencial da música na promoção de cultura, porém, quais outros benefícios que o estudo formal de música pode acarretar na formação de uma criança? O treinamento musical pode gerar mudanças cerebrais tornando o indivíduo mais ‘inteligente’?
Inaugurando o primeiro artigo da série “Música na Cabeça”, abordarei um tema que tem sido objeto de muitas pesquisas e estudos científicos: “O cérebro do Músico”.
A “plasticidade cerebral”
Durante muitos anos pensou-se que a maturação cerebral se desenvolvia na infância, e não poderia ser modificada posteriormente. Hoje, a partir do avanço científico, sabe-se que o cérebro é capaz de se adaptar e até modificar-se, de acordo com as experiências vivenciadas ao longo de toda a vida, e não apenas na infância.
A música, e mais especificamente, o estudo musical, vem sendo tema de muitas pesquisas nas quais o principal objetivo é aprofundar a compreensão da neuroplasticidade. O termo plasticidade cerebral, ou Neuroplasticidade, referem-se às alterações que ocorrem na organização do cérebro como resultado da experiência.
Estudos comparativos entre músicos e não-músicos, vêm demonstrando as diferenças de organização e anatomia cerebral entre esses dois grupos.
Atualmente sabe-se que certas regiões cerebrais (corpo caloso, córtex motor e cerebelo) podem apresentar alterações funcionais e estruturais causadas pelos desafios e exigências requeridas pelo estudo musical.
Essas diferenças na anatomia cerebral de músicos são evidentes em exames de neuroimagem (ressonância magnética, tomografia computadorizada), porém, quais são as conseqüências (benéficas ou não) de tais diferenças no cotidiano dos músicos, foram pesquisadas através de uma série de estudos comparativos.
Efeitos práticos da neuroplasticidade entre músicos e não-músicos
Iremos analisar os efeitos práticos decorrentes das mudanças anatômicas das três estruturas cerebrais citadas acima.
Corpo caloso (fig. B)- Conjunto de fibras nervosas que conectam os dois hemisférios cerebrais (fig. A).
O corpo caloso desenvolve um papel importante na integração funcional entre os dois hemisférios.
É consensual no meio científico, que o controle do movimento e a coordenação motora, assim como a transferência inter-manual de informação sensório-motora, aumentam gradualmente entre quatro e onze anos de idade, o que coincide com o período de maturação do corpo caloso.
Segundo os pesquisadores, a principal hipótese da mudança anatômica do corpo caloso é o treinamento musical precoce, especialmente de pianistas, que desenvolve na fase de maturação, habilidades bi manuais complexas, ou seja, a exigência do instrumento desenvolve a habilidade das duas mãos de tal maneira que altera a estrutura cerebral.
Pensa-se que a adaptação sofrida na estrutura cerebral, mostra-se benéfica em outras áreas que exigem habilidades motoras, não se restringindo às capacidades musicais.
Córtex motor – área responsável pela execução dos movimentos motores.
Os córtices motor direito e esquerdo apresentam assimetria, ou seja, indivíduos destros apresentam o córtex motor esquerdo maior que o córtex motor direito (nos canhotos isso se inverte). Porém, exames realizados com indivíduos músicos e não músicos demonstram que esse padrão de assimetria é reduzido nos músicos.
Em testes manuais onde os indivíduos deveriam demonstrar agilidade e rapidez com ambas as mãos, o grupo de músicos realizou os testes de maneira mais ágil e satisfatória que o grupo de não-músicos.
O estudo também verificou uma correlação entre o tamanho do córtex motor de ambos os hemisférios e a idade de início dos estudos musicais. Quanto mais cedo o início dos estudos, maiores as dimensões do córtex motor direito e esquerdo.
Assim, esses indivíduos com maior córtex motor e menor assimetria inter-hemisférica poderiam se sobressair no desempenho de determinadas habilidades motoras e superar indivíduos que apresentam menor córtex motor, ou maior assimetria, ou ambos.
Cerebelo (Fig. B) - área responsável pela manutenção do equilíbrio e pelo controle do tônus muscular e dos movimentos voluntários, bem como pela aprendizagem motora. Dependemos do cerebelo para andar, correr, pular, andar de bicicleta, etc.
Os músicos apresentam aumento do volume cerebelar em torno de 5% sobre indivíduos não músicos. Estudos ainda estão em andamento a fim de verificar os benefícios trazidos por essa mudança anatômica, porém, sugere-se que os músicos desenvolvem maior habilidade de reflexos motores, maior agilidade e coordenação motora fina mais sofisticada que não músicos.
Outros efeitos testados em estudos comparativos demonstram habilidades elevadas:
Campo auditivo: músicos que iniciaram o estudo musical até os nove anos de idade apresentaram maior desempenho auditivo que não músicos e músicos “tardios”.
Capacidades cognitivas: muitas pesquisas têm relatado associações positivas entre estudo formal de música em crianças e capacidades pertencentes ao domínio não-musical, como linguagem, matemática e raciocínio visio-espacial, demonstrando que a habilidade cognitiva se estende para outras áreas além da musical. Embora os “efeitos” do estudo musical na fase infantil sejam mais evidentes, pesquisadores sugerem a possibilidade da persistência dos benefícios do treinamento musical, em domínios não-musicais, na fase adulta. Portanto, o estudo musical no adulto também pode trazer benefícios cognitivos em áreas não musicais.
Capacidade visual: Os músicos apresentam maior rapidez do movimento dos olhos, o que pode beneficiar seus reflexos em atividades cotidianas. Segundo os pesquisadores, a leitura complexa e rápida da partitura desenvolve uma agilidade especial em músicos formais.
Atenção: a complexidade de elementos que um músico precisa dispensar ao tocar uma música pode desenvolver uma capacidade atencional diferenciada. Para executar uma peça musical, um músico precisa atentar simultaneamente para muitos elementos: execução das notas corretas, métrica, dinâmica, movimentos motores finos, interpretação, performance no palco, integração com o grupo (se for o caso), e tantos outros elementos que exigem uma rápida resposta. Todo esse desafio acarreta num desempenho de atenção acima da média.
Enfim, poderíamos nos estender muito mais, afinal, o cérebro humano é tão formidável, que quando começamos a nos aprofundar um pouco sobre seu funcionamento nos deparamos com sua enorme complexidade.
Com esse artigo, procurei demonstrar um pouco o conteúdo de pesquisas recentes que comprovam que o estudo da música desde a infância pode sim trazer benefícios que se estendem para a vida adulta, e vão além do instrumento musical. Vimos que músicos respondem melhor tanto no campo motor como no campo cognitivo.
Assim, os benefícios da música vão além do desenvolvimento cultural, eles abrangem adaptações cerebrais únicas que beneficiam os indivíduos em muitos aspectos importantes da sua vida.
Então, que seja muito bem vinda a Lei 2738/08, que apesar das muitas falhas pode, pelo menos, despertar nas crianças o desejo de um estudo profundo dessa matéria tão fascinante que é a MÚSICA.
Referências bibliográficas
OLIVEIRA E RODRIGUES, Ana Carolina. Atenção Visual Em Músicos E Não Músicos: um estudo comparativo. Dissertação de mestrado em Música. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
PEDERIVA, Patrícia L. M., TRISTÃO, Rosana M. Música e Cognição. Brasília: Ciências e Cognição, 2006, Vol. 9: 83-90.
PERETZ I., ZATORRE R. Brain Organization for music processing. Montreal: Annual Review Psychology, vol. 56, 2005.
5 comentários:
Mas este potencial cerebral só pode ser atingido por um músico, ou um amante da música também poderia alcançar esses diferenciais?
Muito interessante o artigo, embora em alguns momentos bastante técnico.
Tive a sorte de estudar da 1ª à 8ª série (no meu tempo eram conhecidos como Primário e Ginásio) em escolas que tinham aulas de educação musical. Considero-as fundamentais na minha formação intelectual, embora eu mesmo não toque nenhum instrumento até hoje. No mínimo me ajudou a aprender a ouvir. Pura falta de dom, claro.
A audição musical realizada por um "amante da música" com certeza gera benefícios em muitos aspectos, tais como maior sensibilidade auditiva e emotiva, maior rapidez de raciocínio,entre outros, porém, certas habilidades citadas no texto são exclusivas aos músicos em virtude do "fazer musical".
Edison, espero que as aulas de educação musical sejam realmente levadas a sério pelas escolas. O estudo de música com certeza só trazem benefícios, e você percebeu isso com sua própria experiência.
Quanto aos termos técnicos, estou procurando, através desta ferramenta, melhorar nesse aspecto, obrigada pela dica.
Abraços
Olá,
Muito bom o artigo, parabéns!
Gostaria de saber a fonte da imagem dos hemisférios cerebrais. Se puder me enviar no e-mail andrea_professora@yahoo.com.br ficaria muito agradecida.
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